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26 de Abril de 2024
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    O estado de coisas inconstitucional e a realidade do cumprimento de pena em regime semiaberto no Brasil

    há 8 anos

    Passados mais de 30 anos da edição da Lei 7.209/1984, na prática, o cumprimento de pena em regime semiaberto no Brasil ainda destoa do disposto na legislação de regência. Desse modo, passível sua análise sob a ótica do estado de coisas inconstitucional.

    1. Introdução

    O Supremo Tribunal Federal, no julgamento de medida cautelar na ADPF nº 347, firmou posição favorável ao chamado estado de coisas inconstitucional.

    Trata-se de uma técnica de julgamento oriunda da Corte Constitucional da Colômbia, passível de utilização em casos de violação generalizada de direitos humanos qualificada por uma inércia prolongada das autoridades em não implementar políticas públicas necessárias à garantia dos mínimos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados[i].

    O estado de coisas inconstitucional não tem por objetivo a declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica propriamente dita. O que se busca por meio dele, inicialmente, é a constatação de que uma situação fática existente na sociedade está maculada pela inobservância reiterada de direitos fundamentais mínimos. Posteriormente, após esta constatação, o intuito é a criação de um diálogo com os poderes públicos, inclusive com o próprio Poder Judiciário, a fim de se estabelecer uma série de medidas a serem adotadas, no sentido de se suprimir ou minimizar o estado de inconstitucionalidade constatado.

    Na ADPF nº 347, a situação fática posta para análise da Corte Suprema é a realidade caótica das prisões brasileiras, que, recentemente, foram descritas pelo próprio Ministro da Justiça como “verdadeiras masmorras medievais”[ii].

    De fato, é público e notório que os estabelecimentos prisionais do país são superlotados e insalubres, e submetem seres humanos a situações degradantes, como, por exemplo, à exposição a doenças infectocontagiosas e à ruptura dos laços familiares, fatos que refletem em prejuízos pessoais que se estendem para muito além do cárcere, demonstrando que as consequências do encarceramento, seja qual for o período de sua duração, se prolongam no tempo, estigmatizando aquele que a ele se submeteu.

    Após a decisão na ADPF nº 347, diversas foram as reflexões acerca do tema. A maioria delas teve como ênfase os percalços do cumprimento de pena em regime fechado, focando olhares na superlotação e nas condições precárias do sistema carcerário brasileiro. Porém, pouco se comentou acerca da realidade dramática do cumprimento de pena em regime semiaberto. Aliás, ouso destacar que este é um dos pontos mais críticos do sistema prisional brasileiro na atualidade, sendo um tema amplamente passível de análise sob a ótica do estado de coisas inconstitucional, o que faço mais detalhadamente daqui em diante.

    2. A realidade do cumprimento de pena no regime semiaberto e a caracterização da atual situação fática como estado de coisas inconstitucional

    O artigo 33 § 1º, b do Código Penal assim estabelece:

    Art. 33 - A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A de detenção, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.

    § 1º - Considera-se:

    b) regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar;

    Não obstante a clareza do dispositivo acima descrito, atualmente, diversos são os estados da federação que sequer dispõem de estabelecimentos prisionais para os reeducandos que cumprem pena neste regime intermediário.

    Portanto, cumpre destacar desde já que a situação fática posta para análise é a ausência de estabelecimentos prisionais adequados para os reeducandos que cumprem pena em regime semiaberto, ou, quando existente o estabelecimento, a insuficiência de vagas. Trata-se de um problema bastante conhecido dos operadores do direito que atuam na área criminal.

    Segundo dados do último levantamento nacional de informações penitenciárias, publicado pelo DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional em junho de 2014[iii], as vagas disponibilizadas no sistema carcerário brasileiro estão assim distribuídas:

    a) 44% (quarenta e quatro por cento) são destinadas aos condenados que cumprem pena em regime fechado;

    b) 31% (trinta e um por cento) são previstas para os presos cautelares;


    c) 18% (dezoito por cento) se destinam aos condenados inseridos no regime semiaberto;

    d) 2% (dois por cento) estão previstas para o regime aberto.

    e) 5% (cinco por cento) para outras hipóteses, como medidas de segurança, por exemplo.

    Estes dados são suficientes para dar suporte a uma conclusão alarmante. Considerando que a quase totalidade dos condenados em regime fechado obrigatoriamente passará pelo regime semiaberto, e, somando-se a isso, a enorme quantidade de pessoas que são condenadas em regime inicial semiaberto, é possível concluir que o déficit de vagas neste regime chega a ser até 03 (três) vezes maior do que o déficit de vagas existentes no regime fechado.

    Em razão desta distorção, o que muitas vezes acontece é que os reeducandos, após conquistarem a progressão de regime ou darem início ao cumprimento de suas penas no regime semiaberto, acabam submetidos a graus de privação maiores do que os legalmente previstos para este regime, o que configura evidente constrangimento ilegal, já que, ao serem submetidos a condições mais rigorosas do que as permitidas pelo ordenamento jurídico, acabam pagando com a liberdade pela negligência dos poderes públicos.

    Renato Marcão, doutrinador especialista no tema, também reconhece a distorção acima mencionada:

    “Não obstante a literalidade do texto, é notória a falência do regime semiaberto, que pode ser identificada por diversos fatores. Em primeiro lugar, e destacadamente, exsurge a absoluta ausência de estabelecimentos em número suficiente para o atendimento da clientela. Diariamente, inúmeros condenados recebem pena a ser cumprida no regime inicial semiaberto. Entretanto, em sede de execução, imperando a ausência de vagas em estabelecimento adequado, a alternativa tem sido determinar que se aguarde vaga recolhido em estabelecimento destinado ao regime fechado, em absoluta distorção aos ditames da Lei de Execução Penal”[iv].

    O fato é que, se o poder público, titular do jus puniendi, não possui estrutura para dar tratamento adequado aos seus cidadãos encarcerados, não se pode permitir que estes tenham sua liberdade restringida além dos limites da legislação em vigor, sob pena de evidente violação ao princípio da legalidade das penas.

    Não é de hoje que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, atentos ao princípio da dignidade da pessoa humana, vetor máximo de nossa Constituição, possuem entendimentos destinados a minimizar este problema. A título de exemplo, trago a lume a ementa abaixo, originária do Superior Tribunal de Justiça:

    HABEAS CORPUS. PENAL. PROGRESSÃO AO REGIME SEMIABERTO. IMEDIATA REMOÇÃO. INEXISTÊNCIA DE VAGA EM ESTABELECIMENTO COMPATÍVEL AO REGIME INTERMEDIÁRIO DETERMINADO PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO CRIMINAL. PRISÃO EM REGIME ABERTO OU PRISÃO DOMICILIAR. POSSIBILIDADE.

    1. O Superior Tribunal de Justiça já firmou compreensão no sentido de que, tendo sido o paciente condenado a regime prisional semiaberto ou aberto ou lhe tendo sido concedida a progressão para o regime mais brando, constitui ilegalidade submetê-lo, ainda que por pouco tempo, a local apropriado a presos em regime mais gravoso, em razão da falta de vaga em estabelecimento adequado.

    2. Ordem concedida para determinar a imediata remoção do paciente para o regime semiaberto ou, caso não haja vaga no estabelecimento adequado ao regime intermediário, que aguarde, sob as regras do regime aberto, até que surja vaga. Caso não haja vaga também no regime aberto, que aguarde em regime domiciliar.

    (STJ - HC: 193394 SP 2010/0229820-1, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 17/03/2011, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/04/2011)

    É necessário reconhecer que o entendimento amplamente majoritário nos tribunais superiores, ao reconhecer ao reeducando o direito até mesmo à prisão domiciliar quando não houver vagas no regime semiaberto, representa um importante passo à minimização do problema. Porém, não podemos deixar de lado o fato de que, muitas vezes, os magistrados singulares e os tribunais estaduais não compartilham do mesmo pensamento, de modo que a submissão a condições mais gravosas ainda é uma realidade, principalmente pelo fato de que grande parcela da população carcerária não dispõe de acesso aos tribunais superiores, seja por carência de recursos financeiros para contratar um advogado, seja pela ausência ou insuficiência da assistência jurídica prestada pelas Defensorias Públicas.

    Deste modo, não é difícil perceber que a técnica do estado de coisas inconstitucional se amolda perfeitamente à situação fática analisada. A colocação de diversas pessoas encarceradas em condições mais rigorosas do que as previstas para seus regimes prisionais representa clara violação generalizada de direitos humanos, sendo que o motivo ensejador da violação é a inércia prolongada das autoridades em não construir estabelecimentos prisionais compatíveis com o disposto na alínea b do § 1º do artigo 33 do código penal.

    Nesse ponto, não é demais lembrar que o artigo 33 do código penal possui redação oriunda da Lei nº 7.209, de 11.7.1984, o que nos permite concluir que a mora estatal já ultrapassa os 30 (trinta) anos.

    3. Conclusão

    Em boa hora, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 347 emerge para somar e reforçar o entendimento jurisprudencial e doutrinário já então dominante sobre o tema aqui debatido.

    A sistemática adotada pela teoria reconhece a necessidade de uma conjugação de esforços por parte de diversos setores da sociedade, a fim de que os dispositivos contidos na legislação constitucional e infraconstitucional que regem o cumprimento de penas privativas de liberdade sejam efetivados, e que a finalidade ressocializadora da pena seja, ainda que tardiamente, alcançada.

    [i] Conceito elaborado com base na sustentação oral em plenário, realizada pelo Prof. Daniel Sarmento.

    [ii] Entrevista do Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, em 05/11/2015, durante o lançamento do INFOPEN Mulheres.

    [iii] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Junho de 2014. Disponível para consulta em: http://www.justiça.gov.br/seus-direitos/política-penal.

    [iv] Renato Marcão, em Curso de Execução Penal, 12ª edição, página 130.

















































































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